
Recentemente assisti ao filme O Solista dirigido por Joe Wright e estrelado pelos atores Jamie Foxx (Nathaniel Ayers) e Robert Downey Jr (Steve Lopez) que narra à história de um morador de ruas/ex-prodígio da música clássica que toca violino nas ruas de Los Angeles. É um filme emocionante que nos faz pensar em todas as pessoas que vivem às margens da sociedade e que são tratados como lixo humano, seres das cidades das sombras, do submundo. Será que ao se deparar com alguém nesta situação já se questionaram quais foram as causas que o levou a esse estado de degradação ou simplesmente preferiu ignorá-lo: finjo que não estou vendo nada, afinal de contas porque tenho que dar importância a isso? Não é problema meu. Não sou eu que estou morando nas ruas e passando por toda sorte de provações; só não quero ter que cruzar com essas pessoas. Ao lado delas sinto-me em perigo constante porque convenhamos é complicado dar crédito a pessoa de aparência nada agradável e pouco confiável. Por isso pego atalho, corto caminho ou ainda pior: julgo, massacro e condeno porque é uma corja de vagabundos, desocupados, bêbados, drogados etc. que se estão nessa situação foi porque assim fizeram por merecer. Não é assim que o preconceito e a falta de humanidade proferem por aí?
Curioso como somos capazes de rotular. Eu vejo uma pedra, e aquilo para mim então é uma pedra, impossível ser qualquer outra coisa. Vemos somente aquilo que nossos olhos são capazes de enxergar, a fina camada da superfície. Impossível ver em seres que se escondem nas sombras a presença de luz. Caíram na escuridão e lá devem permanecer abandonados e banidos como se fossem cães sarnentos e ratos de esgoto, não há salvação. Eles proliferam e contaminam o ambiente. Tiram à beleza e a tranqüilidade das ruas, o sol se esconde, tudo é cinza. Então viramos a cara, fechamos os olhos porque a escória está ali. E se vierem bater à nossa porta ou não os atenderemos ou os olharemos de soslaio com a desconfiança premente de que temos algo a perder. Não é assim? Parafraseando Fábio de Melo: “Olha devagar para cada coisa. Aceita o desafio de ver o que a multidão não viu. Em cascalhos disformes e estranhos, diamantes sobrevivem solitários”. Não veja a margem, olhe dentro, mire fundo, é preciso ver, mergulhar, sentir. Olhe como quem olha uma criança que está aprendendo a andar; olhe como quem olha uma pessoa que se vê perdida na imensidão.
Nas ruas há labirintos infindáveis. Lá não vive sobrevive. No entanto, ainda que carreguem no peito inúmeras fragilidades trazem dentro de si uma imensa fortaleza. Porque é preciso coragem e ser muito forte para enfrentar o que os espera, pisar num poço sem fundo e não cair em desespero e mesmo que as agruras intensifiquem e afete a sanidade mental conseguem forças para continuar a seguir em frente. E essa coragem que vem não sei de onde, o que na verdade bem sabemos donde vem, não é a ausência do medo, é o medo inflado de força e vestido de coragem. Deus presente!
Muito dos que foram parar nas ruas não foi porque assim escolheram e não é preciso expor de forma precisa os diversos casos; vemos constantemente nos noticiários e deparamos com o quadro dia a dia. É que a vida dá rasteira mesmo quando não se envereda por caminhos tortuosos. Dá para enxergar agora? Olha calmamente...
O universo nos ensina que mesmo na escuridão há a presença de luz. E se cada pessoa acender uma vela por menor que seja aquecerá com o fogo do amor corações frios - desprovidos de afeto, de um amigo que os ajude a acalmar suas dores, a se erguer, a ser. E é essa a chama que alimentará de esperança e os manterá vivos e inteiros novamente e/ou pela primeira vez.
Foi isso que aprendi desde cedo,
que não importa que aparência uma pessoa tenha
ou quem ela seja
isso não o tornará menos ou mais importante
Aprendi que se deve amar alguém não pelo que tem,
por status ou pelo que representa
mas sim por quem é no seu interior
Aprendi que se deve estender a mão àquele que necessita
Porque um dia pode ser você
Que venha a precisar
Não importa qual ou em que ângulo
De necessidade
Aprendi também que não se deve deixar no escuro
Quem tem sede e urgência de luz
Que quando se dá as costas
Também se roubam sonhos
E joga o outro no mar da desesperança
Aprendi que loucos ao receber um prato de comida
Dividem e conversam com as flores
Porque elas lhe ofertam perfumes
Sem nada receber
Aprendi que um louco que vivenciou as ruas
Se recebe carinho e cuidados
Chama nosso pai de pai e nossa mãe de mãe
E os filhos do casal
protege como se fossem irmãos
Aprendi que se deve confiar
Mesmo quando reina no mundo
Inteira desconfiança
a falta de fé em Deus
E nos homens
E que todo mundo tem direito a uma segunda chance.
Que é preciso desprender do antigo
E vestir-se do novo.
Aprendi que se deve acreditar que é possível mudar,
Que o que aparenta não ser bonito
Pode trazer belezas imensuráveis por dentro
A Crer que um pequeno gesto pode salvar uma vida
Que quando várias pessoas se juntam a semear
fazem nascer em solo árido mudas de esperança
E que mesmo que você seja um só,
aquele pequeno ato fará a diferença.
É isso que o amor faz! Dá a capacidade de fazer brotar flores nos desertos da existência, e do ato de cultivar fará surgir oásis com fontes de curas bem maiores, e esta é a certeza plena de que aquele gesto humano de amor foi a melhor coisa a se fazer.
É preciso ter um olhar demorado sobre tudo, olhar como se fosse a primeira vez. Há beleza em cada mínima coisa, é possível ver e sentir quando se caminha de mãos dadas com a poesia.
Angella Reis